segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

EROS E CULTURA DIGITAL: EXPOSIÇÃO, INTIMIDADE E CONSUMO NAS SOCIABILIDADES EM REDE

Uma das maiores preciosidades que os gregos deixaram para a humanidade temos, sem dúvida, a sua mitologia. Milhares de anos depois, seus mitos são sempre revisitados, reinterpretados e atualizados. Narciso e Eros são frequentemente evocados para explicar fenômenos que vão da psicologia a comportamentos da sociedade de consumo. São dois referenciais de beleza e amor, muitas vezes destrutivos.
O mito de Narciso e Eco é uma tragédia que surgiu na Grécia antiga e que, diante das representações do narcisismo nas artes e na cultura, se desenvolveram vários estudos na área da psicanálise e sociologia para entender até que ponto o narcisismo influencia comportamentos na sociedade contemporânea. O nome Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) é uma importante representação da vaidade humana. O mito traz a história trágica envolvendo a ninfa Eco e o caçador de extrema beleza Narciso.
Narciso - Caravaggio
Diz o mito que Narciso era filho do deus Cephisus e da ninfa Liríope. Ele despertava muita cobiça nas ninfas e donzelas, mas vivia só, pois não encontrava alguém que merecesse seu amor. E foi justamente esse desprezo pelas mulheres e a fascinação por sua imagem que o levou à morte. Havia uma ninfa, chamada Eco, que tinha o defeito de falar demais e costumava sempre repetir a última palavra em qualquer conversa. A ninfa Eco foi amaldiçoada pela deusa Hera condenado-a a não mais falar por iniciativa própria e só responder quando fosse interpelada. Ela se apaixona perdidamente por Narciso, mas é repelida pelo jovem que não a julga digna do seu amor. Depois desse acontecimento, a ninfa passa a viver nas cavernas e definha até a morte. Seus ossos se transformam em pedra e nada resta além da sua voz.
Comovido pelo sofrimento da ninfa, o deus Nêmeses pune Narciso e o induz a beber água numa fonte onde era possível ver o seu reflexo na água. Admirado com sua própria imagem, o jovem pensa trata-se de algum espírito das águas. Não se contendo, baixa o rosto para beijar o seu reflexo e mergulha os braços para abraçar-se. O contato com a água faz sua imagem sumir e ele se sente desprezado. Dessa forma, Narciso ficou dias a admirar sua própria imagem na fonte. Sem comer ou beber seu corpo definha. A beleza e o vigor deixam-no e quando ele gritava "Ai, ai", Eco respondia com as mesmas palavras. Assim Narciso morreu. A história do mito se completa com sombra de Narciso atravessando o rio Estige, em direção ao Hades, ela ainda debruça-se sobre suas águas para contemplar sua figura.
O mito de Narciso influenciou muitos artistas ao longo dos séculos. Nas artes plásticas, há pinturas de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí e Waterhouse. Na literatura, encontram-se várias passagens na obra do russo Fiódor Dostoevsky e influenciou a obra do escritor inglês Oscar Wilde. Os estudos psicanalíticos do narcisismo tomaram verdadeiro impulso com o Freud em seu artigo intitulado ‘Introdução ao Narcisismo’. As primeiras observações de Freud  procuram identificar a origem do narcisismo como um investimento libidinal do ego. Para Freud os instintos autoeróticos são fundamentais mas há algo que se acrescenta a esse autoerotismo para se formar o narcisismo.
O indivíduo tem uma dupla existência: “com fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra, ou, de todo modo, sem a sua vontade”. Na primeira o indivíduo vê a sexualidade nele mesmo e a outra há uma projeção onde ele colocará suas forças. Algumas vias são destacadas por Freud que intervêm nessa relação da sexualidade – projeção para aproximar o conhecimento do narcisismo: consideração da doença orgânica, da hipocondria e da vida amorosa dos sexos. Na doença orgânica o indivíduo recolhe seus investimentos libidinais de volta para o Eu, até a melhora da enfermidade. Na hipocondria, as sensações físicas são muito dolorosas e influenciam no efeito da libido.
 A figura simbólica de Narciso, como uma espécie de culto da intimidade, cresce do colapso e não da afirmação da personalidade. Lasch apresenta como características do narcisismo a pseudo auto percepção, sedução calculada, humor nervoso e autodepreciativo. Para o autor, Há conexões entre o tipo de personalidade narcisista e certos padrões característicos da cultura contemporânea, tais como o temor intenso da velhice e da morte, o senso de tempo alterado, o fascínio pela celebridade, o medo da competição, o declínio do espírito lúdico, as relações deterioradas entre homens e mulheres. Lasch ainda aponta que o narcisismo chama a atenção porque os narcisistas alcançam posições de proeminência. Apesar de todo o seu sofrimento íntimo, o narcisista possui muitos traços que permitem o sucesso em instituições burocráticas, as quais valorizam a manipulação de relações interpessoais, desencorajam a formação de ligações pessoais profundas e, ao mesmo tempo, dão ao narcisista a aprovação que ele precisa para validar sua auto-estima.
Na sociedade contemporânea, as imagens fantasísticas são a tônica das relações de consumo e as inflexões dos meios de comunicação contribuem para a produção e reprodução de simulacros. Adorno  faz uma crítica a indústria cultural e a cultura de consumo destacando que se aproveita da fraqueza do ego narcísico dos consumidores, pois se mantém através de uma pseudo-satisfação. Outro ponto de destaque é que a indústria cultural aniquila a determinação do sujeito enquanto indivíduo, na medida em que, massifica os conteúdos e impõe barreiras para ver além do que interessa a coletividade.

AMORE E PSICHE, ANTONIO CANOVAS

Em Eros há algo que envolve mistérios que serviram de base para o desenvolvimento social do erotismo. O mito de Eros e Psiquê trata do amor que tudo suporta. Psiquê, uma linda mortal acaba despertando a ira da deusa Afrodite. Afrodite enviou, então, seu filho Eros (cupido) para fazer com que Psiquê se apaixonasse pelo homem mais feio e vil que existisse. Acontece que Eros acaba se apaixonando por Psiquê, e os dois casam, sem que, porém, Psiquê pudesse ver o rosto do marido, para que pensasse que esse casamento era um castigo dos deuses. Depois de resistir por algum tempo, Psiquê acabou por quebrar as regras impostas e viu o rosto de Eros que, enfurecido, abandonou-a. Mas seu amor por Eros era tão intenso que a fez procurar Afrodite para pedir-lhe que intercedesse por ela, ajudando-lhe a encontrar Eros. Afrodite impôs-lhe vários sacrifícios e tarefas. Ela vence todas as tormentas e casa-se com Eros. Essa união resultou ainda no nascimento de seu filho Voluptas (Prazer).
 O filósofo sul coreano Byung-Chul Han, vem chamando a atenção para o que ele chama de “a agonia de Eros”. Em pleno início do século XXI vivemos a sociedade dos excessos, da exposição sem mistério, do apelo escancarado que não dá espaço para a imaginação. Tudo se transforma em objeto de consumo. O narcisismo, por exemplo, não é amor próprio. O narcisista não pode fixar claramente seus limites, tudo tem que girar em torno do Eu. “Vivimo em uma sociedade que se hace cada vez más narcisista. La libido se invierte sobre todo em la propia subjetividade. El narcisismo no es ningún amor próprio. El sujeto del amor próprio empreende uma dilimitación negativa frente al outro, a favor de sí mismo. Em cambio, el sujeto narcisista no puede fijar claramente sus limites. De esta forma, se diluye el limite entre él y el outro. El mundo se le presenta solo como proyecciones de sí mmismo de algún modo. Deambula por todas partes como uma sombra de spi mismo, hasta que se ahora em sí mismo” (HAN, 2014, p. 05).
Acontece que o sujeito narcisista-depressivo está esgotado e fatigado em si mesmo. Como isso é possível? Han diz que o corpo, com seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. Não há nenhuma ‘personalidade’ sexual. Se o outro se percebe como um objeto sexual, se desfaz aquela ‘distância original’ que impede que o outro se coisifique como um objeto. Pelos meios de comunicação digitais, tenta-se destruir as distâncias frente ao outro. Onde tudo é possível, não há amor como ferida e paixão. O amor e a sexualidade têm um preço. Suprime-se um desejo dirigido ao ausente. Aí onde Eros começa a agonizar. 

“El amor se positiva hoy como sexualidade, que está sometida, a su vez, ao dictado del rendimento. El sexo es rendimento. Y la sensualidade es um capital que hay qye aumentar. El cuerpo, com su valor de exposición, equivale a uma mercancia. El outro es sexualizado como objeto excitante. No se puede amar al outro ya no es uma persona, pues há sido fragmentado em objetos sexuales parciales. No hay nunguna personalidade esual” (HAN, 2014, p. 13).

 A ética de Eros certamente não contempla os abismos de um erotismo que se manifesta como excesso e loucura, mas chama a atenção com insistência para a negação do outro, que está em vias de desaparecer em uma sociedade que se mostra cada vez mais exibicionista. Han fala de um amor domesticado que serve como fórmula para o consumo, como um produto sem atrevimento, sem excessos. Não há transcendência e nem transgressão. Somos sujeitos incapazes de concluir a vida. As imagens pornôs, por exemplo, mostram uma mera vida exposta. O pornô é a negação de Eros. Aniquila a sexualidade em si mesma. O obsceno no pornô não consiste no excesso de sexo, já que ali não há sexo. A sexualidade não está armazenada nessa ‘razão pura’. Para o filósofo, “a transformação do mundo em pornô se realiza com a sua profanação” (HAN, 2014, p. 25). Essa profanação se materializa com a desritualização e dessacralização. A “cara” pornográfica não expressa nada, não há expressividade e mistério.
A imaginação de internet parte de uma acumulação de atributos, mais do que uma visão global do objeto e, nesta configuração específica, as pessoas dispõem de menos dados, parecem menos capazes de idealizar. Sua imaginação está determinada pelo consumo. Os novos meios de comunicação não dão precisamente a fantasia. Mas, uma grande quantidade de informações, sobretudo visuais. A hipervisibilidade não é vantajosa para a imaginação. Assim, o pornô, que de certo modo leva ao máximo a informação visual, destrói a fantasia erótica. 

Pero la desnudez, como exhibición, sin mistério ni expresión, se acerca a la desnudez pornográfica. Tampoco la cara pornográfica expressa nada. Carece de expresividad y de mistério: de uma figura a la outra, de la seducción al amor, luego al deseo y a la sexualidade, finalmente al puro y simple pornô, cunato más se avanza, más adelantamos em el sentido de um secreto menos, de um enigma menor. Lo erótico nunca está libre de mistério. La cara cargada com valor de exposición hasta estalar no promete ‘ningún uso nuevo, colectivo de la sexualidade. La exposición aniquila precisamente toda possibilidade de comunicación erótica. Es obscena y pornográfica la cara desnuda, carente de mistério e expresión, reducida exclusivamente a su estar expuesta. El capitalismo intensifica el progresso de lo pornográfico em la sociedade, em cuanto lo expone todo como mercancia y lo exhibe. No conoce ningún outro uso de la sexualidade. Profaniza el Eros para convertirlo em pornô”. (HAN, 2014, p.27)

 Platão disse que Eros se dirige a alma e tem poder sobre todas as suas partes: desejo (epithymia), valentia (thymos) e razão (logos). Cada parte da alma tem sua própria experiência do prazer e interpreta o belo de forma própria em cada caso. Essas três características agem articuladas. Na sociedade do consumo essa balança desequilibra pelas práticas de exposição e narcísicas. Vemos o fim da felicidade amorosa com uma prova de que o tempo pode abrigar a eternidade..

* Juliana Almeida


Referências

ADORNO, T. W. Mínima Moralia (1951). São Paulo: Ática, 1992
FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, ensaios da Metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. La agonia del Eros. Barcelona: Herder Editorial, 2014.
LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.