sexta-feira, 26 de maio de 2017

Damnatio ad bestias: o novo Coliseu se chama Facebook

Quem não conhece alguém que, de alguma maneira, sofreu um linchamento público no Facebook, atire a primeira pedra. Uma vidraça de grande alcance que tem os tentáculos quase infinitos pela cultura do compartilhamento. A popularização da rede descentraliza a informação, destaca os indivíduos que agora têm a possibilidade de se expressar, ser “ouvido” e reverberar as informações e opiniões. Desde 2011, o Facebook tem sido um canal mobilizador de muito sucesso. A Primavera Árabe só foi possível graças a ele e ao Twitter. Mas quando uma rede social passa a ser arena de guerra e, o pior, de linchamento público sem chance de defesa?
Tenho um professor que diz que o Facebook “abriu às portas do inferno” e não vejo isso com exagero. Liberdade de expressão é principio constitucional. Mas a intolerância, o pré julgamento, a pressa em informar, opinar, destruir reputações encontraram um canal para ecoar o que temos de pior.
Ronaldo Lemos, no livro “A vida em rede” fala sobre a sua preocupação de como o Facebook tem se tornado uma espécie de Coliseu onde cada semana, por exemplo, uma pessoa sofre uma espécie de linchamento público. “Às vezes o personagem público ou privado é escolhido e permanece, durante uma semana ou mais, no centro da esfera pública, sendo repreendido ou julgado e condenado pela multidão. Uma semana depois, todo mundo já esquece e é a vez de outro cidadão, totalmente diferente, ocupar a posição de dentro do Coliseu, e assim por diante."
Tempos estranhos, onde a história se repete a partir de outras ferramentas. A internet é a quarta evolução tecnológico-comunicativa e o Homo Tecnológicos não sabe lidar com os princípios básicos de civilidade. Começo efetivamente a concordar com o velho Bauman, “as redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.” De resto é torcer para não ser a atração da vez, porque a multidão quer espetáculo!

quinta-feira, 2 de março de 2017

O mundo exposto: como entender a sociedade da transparência


Finalizando a minha saga para entender a filosofia de Byung-Chul Han, termino a leitura do seu terceiro livro “A Sociedade da Transparência”. Comecei a mergulhar no seu universo pelo livro “A Agonia de Eros” e depois fui para “Sociedade Cansada”. Han é, como todo filósofo, observador atento e problematiza seu tempo. Pontua elementos que vem transformando significativamente a sociedade e não apenas por causa da revolução digital.
Ele analisa, nesse livro, o que chama de ‘tempo transparente’, um tempo destituído de destino e de todo o conhecimento. Uma realidade desembaçada, sem mistério e negatividade que torna-se pornográfica. O dinheiro torna tudo comprável e a sociedade do consumo torna tudo “um inferno do igual”.
Han é um grande crítico dessa busca por transparência, operacionalidade que destitui qualquer tipo de ambivalência. O autor cita Richard Sennett para caracterizar a sociedade que necessita de papeis a serem executados. Uma representação tão necessária para a vida pública. A sociedade positiva não admite sentimentos negativos. O amor, por exemplo, é domesticado e positivado como fórmula de consumo e conforto.
Na sociedade exposta, cada sujeito se torna seu próprio objeto de publicidade. O valor da exposição é a medida de tudo, “tudo é entregue, nu, sem segredo, à devoração imediata”. Todos os rituais são eliminados porque se tornam um obstáculo à aceleração dos ciclos de informação, da comunicação e da produção. Claro que as redes digitais servem de análise para essa aceleração e evidência narcísica. Han cita, “Os social media e os motores de busca personalizados erigem na rede um espaço próximo absoluto, do qual o fora foi eliminado. É um espaço onde nos encontramos somente a nós mesmos e aos que se assemelham a nós. Não há qualquer negatividade que torne uma mudança possível. Esta proximidade  não apresenta ao participante senão essas secções do mundo a seu gosto. Desse modo, desintegra a esfera pública, a consciência pública, crítica, e privatiza o mundo. A rede transforma-se numa esfera íntima, ou numa zona de bem-estar. A proximidade, da qual toda a distância do longe foi eliminada, é também uma forma de expressão da transparência.”

Portanto, a hiperconectividade e a hiperinformação não traz mais luz e liberdade, muito pelo contrário, vivemos um outro tipo de panóptico. Nenhum muro separa dentro e fora mas, a vigilância se torna diferenciada. Não mais há um “ataque à liberdade”, hoje voluntariamente cada um se entrega ao olhar panóptico. Somos algozes e vítimas. É a dialética do presente.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Sociedade do cansaço


O título desse texto é igual ao do livro do filósofo sul coreano Byung-Chul Han, que chama a atenção para uma sociedade contemporânea baseada na positividade e hipervisibilidade. O livro é pequeno, mas de um conteúdo impressionante. Um verdadeiro raio X dos reflexos de uma mudança, ainda bastante imprevisível, de uma sociedade que transmuta da disciplina para o desempenho.
Han  alerta que estamos em uma sociedade que caracteriza-se pelo desaparecimento da alteridade e da estranheza. O estranho cede lugar ao exótico onde, por exemplo, os imigrantes são consideramos mais um peso do que uma ameaça. Vivemos uma violência da positividade, ou seja, a negatividade, a contestação perde espaço para uma transparência que muito mais vigia do que liberta. Vivemos tempos de superprodução, superdesempenho e supercomunicação... e não estamos dando conta disso!
A sociedade disciplinar de Foucault foi substituída pela sociedade do desempenho e produção. As pessoas são empresárias de si mesmas, mesmo trabalhando em fábricas, etc. A busca incessante pelo melhor desempenho pode garantir melhores posições, mesmo que isso custe, inclusive, a saúde mental. Para Han, a sociedade disciplinar era regida pela negatividade, pela proibição, coerção. A sociedade do desempenho se distancia dessa negatividade: o poder ilimitado, o “yes, we can” expressa o caráter da positividade. “No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram o projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, diz Han.
Esse excesso de positividade também se configura em excessos de estímulos, informações e impulsos. A multitarefa não representa nenhum avanço civilizatório, muito pelo contrário, há uma preocupação maior em sobreviver (muito se aproxima de instintos selvagens) e perde-se o poder contemplativo, a tolerância ao tédio – visto de forma importante para o processo criativo. Ao citar Hannah Arendt, o autor compara a figura do animal laborans – animal trabalhador – moderno, ao animal laborans pós-moderno que individualiza-se na sociedade do desempenho. Ele pode ser tudo, menos passivo. É hiperneurótico e hiperativo.
Para o filósofo sul coreano é pura ilusão acreditar que quanto mais ativos somos, mais livres nos tornamos, “a sociedade do cansaço, enquanto sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade de doping”. Esse cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário que individualiza e isola.
É importante pensar em tudo isso muito seriamente, as palavras de Byung-Chum Han saem do campo epistemológico e sentimos na prática, nesse cotidiano voltado para o desempenho. Como o autor bem diz, “o excesso de elevação do desempenho leva a um enfarto da alma”.... sim, para a OMS, por exemplo, são mais de 300 milhões de pessoas com depressão no mundo. Não se pode mais fechar os olhos para isso.
Chegamos ao ponto de materializar as palavras do escritor Peter Handke.... “eu não estou cansado de ti, mas cansado pra ti”. Viver não está sendo fácil!

  Por Juliana Almeida


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

#vertigemdigital? Um olhar sobre o livro de Andrew Keen

Como professora de cultura digital, me vi na obrigação de ler o livro tão badalado de um dos empreendedores pioneiros do Vale do Silício, Andrew Keen. “#vertigemdigital: porque as redes sociais estão dividindo, diminuindo e desorientando” traz um panorama de que pensam os “cabeças” do Vale do Silício, criadores das redes sociais mais influentes do mundo. Entre citações filosóficas, delírios foucaultianos e devaneios cinematográficos de Hitchcock, Andrew Keen traça um perfil bem pessimista do desenvolvimento das redes sociais digitais, seus impactos na nossa privacidade e identidade. Confesso que a leitura não me convenceu.
O livro é uma mistura de diário de bordo e experiências vividas pelo autor que o inquietaram a ponto de escrever o livro. Diante do cadáver do filósofo iluminista Jeremy Bentham que, para atender sua vontade, tem seu corpo exposto no Autoícone, na Universidade Oxford, ele desperta para os perigos da exposição sem limites e como, ele mesmo, tenta frear seus impulsos de compartilhamento na rede.
O futuro do mundo é social. Isso é dito em todo o livro. Seria, inclusive, uma profecia feita por Mark Zuckerberg, criador do Facebook. E isso não será nada bom. Segundo Keen “a mídia social hoje estilhaça nossas identidades, de modo que sempre existimos fora de nós mesmo, incapazes de nos concentrar no aqui e agora, aferrados demais à nossa própria imagem, perpetuamente revelando nossa localização atual, nossa privacidade sacrificada à tirania utilitária de uma rede coletiva”.
Ora, nós ainda não vivemos em uma sociedade tecnocrata e ainda impomos nossa vontade sobre a tecnologia. Somos bastante influenciados, sim. Mas o poder ainda está em nossa decisão do tamanho da exposição que teremos. Essa visão determinista de Keen realmente me incomoda durante toda a leitura.
Que a sociedade em rede se tornou um “bacanal transparente’ eu ate concordo. Há excessos em tudo. Não temos mais o tempo e o espaço como regulador das nossas ações. Como bem diz Manuel Castells “são espaços de fluxos e tempo intemporal”. É um outro plano de realidade. Keen parte de conceitos e afirmações que não  deixam clara sua linha de raciocínio. Ao dizer que TUDO se  tornará social, não é o bastante para entender todos os malefícios que a revolução tecnológica nos espera.
Assim como a Revolução Industrial mudou o rumo da humanidade, a revolução tecnológica tá cumprindo o seu papel. Difícil prever o futuro. Difícil entender uma sociedade que sai do fordismo para, segundo David Harvey, atuar na acumulação flexível. Estamos no meio das mudanças onde o analógico e o digital se encontram. Não temos como avaliar tudo isso “friamente” porque a revolução está acontecendo agora.
A questão que envolve a privacidade não é discurso novo. Richard Sennett traz no seu maravilhoso livro “O declínio do homem público”, que a intimidade no século XVIII já era algo discutido e os limites entre o que é público e privado também.
Keen destaca que estamos desenvolvendo um comportamento de rebanho, na perspectiva do “compartilhamento sem atrito” possibilitado pelas redes sociais. Ora, o que a cibercultura nos proporciona é um encontro por afinidades, uma renovada forma de ‘tribalização’ do mundo. Não há fronteiras para estabelecer laços que, por sinal, são multifacetados, fracos e especializados.
Ao citar Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo seus desejos; não a fazem nas circunstâncias  que eles mesmo escolhem, porém nas circunstâncias encontradas, dadas e transmitidas do passado”, Andrew Keen acaba ressussitando uma meta narrativa que o passado e o presente estão sempre em tensão e sempre recorremos à tradição para sustentar nossas práticas sociais.

Vivemos tempos líquidos, o velho Zigmunt Bauman já nos alertou. Há mudanças estruturais profundas. Não é uma visão rasa e apocalíptica que vai explicar toda sua complexidade. Dizer que as redes sociais estão cumprindo ou até substituindo o papel do Estado-Nação foi demais para o meu bom senso. Andrew Keen pode entender muito de empreendedorismo digital, mas para explicar os impactos sociais com equilíbrio e muita reflexão..... o buraco é mais embaixo!