terça-feira, 28 de julho de 2015

Amor e renúncia: a presença da mulher no Cangaço*

Diante do quadro de miséria e conservadorismo que se descortinava no sertão nordestino no início do século XX, as mulheres também eram vítimas. A educação da mulher sertaneja era resumida às habilidades nos trabalhos domésticos e a total obediência ao homem. Muitas eram vítimas da rigidez dos pais e, quando casavam, dos maridos. Acompanhar os cangaceiros se tornava um atrativo porque eles eram considerados heróis pela comunidade sertaneja diante das muitas histórias que cercavam o cangaço. Era um misto de temor e fascínio por essa vida bandoleira sem respeitos às regras e normas vigentes. Até 1930, com a chegada de Maria Bonita no bando de Lampião, não havia mulheres cangaceiras porque os cangaceiros acreditavam que elas trariam discórdia e ciúmes. Alguns, como Corisco, por exemplo, eram casados, mas as mulheres não acompanhavam os maridos. Lampião conheceu Maria Gomes de Oliveira, Maria Bonita, no ano de 1929 na fazenda Malhada de Caiçara, perto do município de Santa Brígida, na Bahia. Ela tinha dezessete anos e era sobrinha de um coiteiro. Casada com o sapateiro José Miguel da Silva, Zé de Neném, ela viva em constantes desentendimentos com o marido. Para o historiador Antônio Amaury Corrêa, Lampião viu pela primeira vez Maria e passou a rodear a casa dos pais da jovem, apaixonou-se e no ano seguinte foi buscá-la para viver com ele. “Estava aberto o precedente. Dali pra frente, os chefes de grupos e muitos cabras passaram a se fazer acompanhar por amantes, amigas e até esposas” . Mais de quarenta mulheres passaram a participar dos bandos. Só da cidade sergipana de Poço Redondo, seis mulheres se tornaram cangaceiras. Mas, nem todas iam por vontade própria. Muitas eram carregadas das suas casas pelos cangaceiros, como Sila (mulher de Zé Sereno) e Dadá (mulher do Corisco). Assim explica o pesquisador Antônio Amaury Corrêa: “A Dadá, quando foi raptada por Corisco, essa sim com menos de treze anos, ela tinha doze anos, Corisco chegou à casa do pai da Dadá, no ano de 1927 e levou Dadá para companhia dele. Só que ele a deixou na casa de uma tia. Dadá ficou durante quatro anos na casa da tia de Corisco e quando Lampião levou Maria para sua companhia, Corisco tirou Dadá da casa da tia e fez com que ela fosse com ele para o bando. Ela conheceu Lampião no dia 24 de abril de 1931. Foi a primeira vez que Dadá viu Lampião e pelas circunstâncias que envolveram a vida dela no cangaço, acabou sendo uma chefe de grupo quando Corisco ficou aleijado dos dois braços”. O pesquisador Jovenildo de Souza afirma que as mulheres deram um colorido especial e mais alegria a vida dos bandoleiros. Até para a dança do xaxado, foi uma revolução. O xaxado era dançado pelos cangaceiros com os seus rifles que eles chamavam: “Minha cara bina!”. Depois que as mulheres entraram, as carabinas foram substituídas por elas e, assim, podiam dançar seus cantos guerreiros. As mulheres tinham grande influência na vida e no comportamento dos cangaceiros, inclusive, segundo os historiadores, Maria Bonita era a única pessoa que conseguia se aproximar de Lampião quando ele estava irado, chegando até a conter sua ira. Havia grande respeito entre os cangaceiros e suas mulheres. A entrada das mulheres no cangaço causou grande mudança no comportamento dos grupos. O senso de liberdade que o cangaço proporcionava, agora com a presença das mulheres, propiciou certa humanização na relação dos cangaceiros e suas vítimas. Mas para um cangaceiro em especial, chamado de Zé Baiano, a relação com as mulheres sempre foi conflituosa. Ele era conhecido pela sua crueldade ao ferrar o rosto ou nádegas das mulheres com as suas iniciais, “JB”. Era um hábito macabro que ele usava para vingar o espancamento sofrido por sua mãe por policiais que queriam saber do seu paradeiro Esse cangaceiro também foi protagonista do mais violento drama passional que se tem notícia no cangaço. Zé Baiano levou Lídia, uma das mulheres mais bonitas a entrar no bando de Lampião, para viver com ele no grupo. Zé Baiano viajou por uns dias e Lídia aproveitou para encontrar-se com um cangaceiro chamado Beija Flor. Mas o casal foi flagrado pro outro cangaceiro chamado Coqueiro que ameaçou contar sobre a traição a Zé Baiano caso Lídia não fizesse sexo com ele. A cangaceira recusou a exigência e Coqueiro falou a Zé Baiano da traição da companheira. Ao romper do dia Zé baiano matou Lídia a cacetadas. Fraturara-lhe os braços e pernas com pauladas violentas e repetidas, por fim batera tanto na cabeça que esmagara-a, deixando a bela Lídia irreconhecível e, terminado o massacre, abrira uma cova enterrando-a Mas havia um drama que era comum a quase todas as mulheres cangaceiras: o fato de abdicar da maternidade ou dos filhos que tinham. As crianças não eram bem vindas no bando, pois faziam barulho e poderiam chamar a atenção da volante. Os filhos das cangaceiras sempre eram escondidos e criados por coiteiros ou parentes dos cangaceiros. * Juliana Almeida – Jornalista e doutoranda em Sociologia

segunda-feira, 27 de julho de 2015

A presença de Narciso nas águas do Facebook (*Juliana Almeida)

Quem nunca ouviu falar no mito de Narciso e Eco? O caminho percorrido desde a cultura grega antiga até o século XXI trouxe uma atualização quase que orgânica desse mito, seja em aspectos sociais ou como parafrenias. A trágica história do belo homem, Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) é uma importante representação da vaidade humana. Admirado com sua própria imagem em um lago, o jovem pensa trata-se de algum espírito das águas. Não se contendo, baixa o rosto para beijar o seu reflexo e mergulha os braços para abraçar-se, mas o contato com a água faz sua imagem sumir e ele se sente desprezado. Dessa forma, Narciso ficou dias a admirar sua própria imagem na fonte. Sem comer ou beber seu corpo definha. A beleza e o vigor deixaram-no e assim Narciso morreu. A história do mito se completa com a sombra de Narciso atravessando o rio Estige, em direção ao Hades, e ela ainda debruça-se sobre suas águas para contemplar sua figura. O mito de Narciso influenciou muitos artistas ao longo dos séculos. Nas artes plásticas, há pinturas de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí e Waterhouse. Na literatura, encontram-se várias passagens na obra do russo Fiódor Dostoevsky e na a obra do escritor inglês Oscar Wilde - o romance ‘Retrato de Dorian Gray’ seria uma representação do homoerotismo retratado no narcisismo. Os estudos psicanalíticos do narcisismo tomaram verdadeiro impulso com Freud em seu artigo intitulado ‘Introdução ao Narcisismo’. As primeiras observações do ‘pai da psicanálise’ procuram identificar a origem do narcisismo como um investimento libidinal do ego. O sociólogo e historiador americano, Richard Sennett, observou que o narcisismo social se potencializa, na medida em que, as relações sociais encorajam o crescimento da valorização do 'eu' e anula o senso de contato social significativo fora dos seus limites. Na sociedade intimista os atores são mais importantes do que as ações, ou seja, o que é mais relevante não diz respeito ao que a pessoa fez, mas, como se sente a respeito do feito. Ele ainda destaca que esse narcisismo atua nas relações sociais porque há uma cultura privada de uma crença no público e que é orientada por um sentimento intimista como parâmetro de significação da realidade. Os ‘narcisos’ contemporâneos encontraram outras águas para navegar. O reflexo da imagem no lago deu lugar ao ecrã dos computadores, tablets, smartphones e tudo que possa incorporar a cultura do compartilhamento. Grandes sociólogos e historiadores já chamavam a atenção para o excesso de exposição da intimidade na vida pública muito antes da internet, desde o século XVIII, mas, certamente, a ‘era’ digital trouxe uma espécie de contágio viral da necessidade de se tornar diferente, se destacar. Claro que tudo está ligado a sociedade de consumo. O consumo e o narcisismo que revolucionam esferas cultuais e comportamentais, devem ser pensado não apenas como um espelhos da vaidade individual, mas como podem representar mudanças significativas nas relações sociais. Isso é um passo importante na percepção de como esse espectro pode interessar diretamente ao entendimento das sociabilidades contemporâneas. A possibilidade de ‘ver’ e ter ‘visibilidade’ pelas redes sociais digitais amplia significativamente comportamentos de diferenciação social e de referência. Assim como o culto ao corpo e o desenvolvimento de práticas narcísicas, a sociedade de consumo busca, incessantemente, estratégias para vender padrões de satisfação. O grande sociólogo e filósofo francês, Jean Baudrillard, traz uma interessantíssima discussão sobre o mito da felicidade e igualdade na sociedade contemporânea que acaba adquirindo uma característica particular ao ter que tornar-se mensurável. Dessa forma, a felicidade e o bem-estar são dimensionados pelos signos e objetos que possam ser vistos. Mesmo sendo uma necessidade individual, a felicidade se fundamenta em propósitos visíveis. O que toda essa discussão tem a ver com o Facebook? Tudo! Como uma grande vitrine, essa rede social – com seus mais de um bilhão de usuários no mundo - tem servido como um reflexo das manifestações narcísicas contemporâneas de contemplação física ou intelectual, além de reforçar estereótipos de beleza através da publicização do consumo material e simbólico. Não só na time line é possível fazer esse tipo de constatação, mas também nas fanpages que se proliferam com um número bastante significativo de seguidores. Páginas como: Fina e Rica; Bonita é você, EU SOU LINDA; Homens gostosos; As + gostosas do FACE apresentam milhares de ‘curtidas’ e reforçam o estereótipo de homens e mulheres magros, sarados, felizes e, acima de tudo, bem sucedidos. O desenvolvimento e popularização do Facebook estabeleceu um fenômeno de criação de ‘modas’ que potencializam a exploração da imagem na rede. Trata-se de duas formas de tirar foto para colocar na rede social: O selfie (um autorretrato onde, com o braço esticado para si, o usuário consegue tirar sua própria foto) e, mais recentemente, o braggie (fotos postadas na rede com a finalidade exibicionista para provocar inveja nos amigos e parentes.). Para se ter uma ideia da dimensão do braggie, foi feita uma pesquisa no Reino Unido e verificou-se que cerca de 5,4 milhões de usuários de redes sociais digitais no país postam esse tipo de foto, sejam elas tiradas em viagens, festas ou na intimidade. Um dado interessante é que sete em cada dez usuários da rede admitiram que manipulam as fotos antes de postá-las: 5% dos homens editam as imagens para parecerem mais magros, contra 2% das mulheres. Portanto, o braggie reforça o consumo e o exibicionismo como forma de distinção social. Ainda segundo a pesquisa as poses mais comuns do braggie são: praia (43%), com bebidas (12%) e os beicinhos para as lentes (3%). Esse caráter efêmero da sociedade contemporânea gera a chamada paixão consumptiva (um tipo de paixão que se extingue em sua própria intensidade) pelas coisas e traz uma força dramática já que o desejo é muito maior do que o sentimento de posse. Por exemplo, nosso desejo de determinada roupa pode ser ardente, mas alguns dias depois de comprá-la e usá-la, ela já não nos entusiasma tanto, ou seja, a imaginação é mais forte na expectativa. E assim as relações vão se construindo. É claro que nem todos os usuários da rede apresentam esse comportamento. Estamos falando de algo bastante recorrente e de total conhecimento de quem acessa cotidianamente o Facebook, por exemplo. Uma pesquisa feita por mim com estudantes universitários para a dissertação de mestrado mostrou que essa imagem pública mediatizada pelo Facebook traz um retorno de visibilidade. Cerca de 48% dos entrevistados disseram se incomodar quando os amigos do Facebook não curtem ou comentam suas fotos. Isso reflete uma necessidade de atenção, ou seja, como uma espécie de ‘vitrine’, o Facebook também é visto como um espelho de aprovação e popularidade. Portanto, no ambiente livre da internet é tolerável dizer aquela verdade que se pensa saber, assim como há possibilidade de expressar visões intolerantes; omitir o que se julga ser verdade e criar simulacros de si e das coisas. Nesse espaço o narcisismo e o consumo simbólico se potencializam para aceitação grupal ou são refutados, embora reconhecidos, como um estilo de vida contemporâneo. Qualquer um pode ser possuído pelo espírito de Narciso no lago virtual e tão presente da internet. Mas cuidado! Como bem disse Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho” e há sempre o risco de se afogar em sua própria vaidade. *Jornalista, mestre e doutoranda em Sociologia PPGS/UFS

A Voz do Brasil: 80 anos de uma tradição inventada (Juliana Almeida*)

No universo das minhas leituras, me deparo com um livro organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger com o instigante título “A invenção das tradições”. O livro traz uma coletânea de textos de historiadores sobre diversas tradições que foram ‘inventadas’ no sentido de perpetuar alguns comportamentos através da repetição. Dá pra imaginar que o famoso saiote escocês, chamado de kilt e associado aos guerreiros antigos da cultura celta, na verdade surgiu de um passado forjado? Pois é, esse é um dos discursos que os pesquisadores acabaram desmistificando. Um longo assunto que trataremos em outra oportunidade. Mas, cruzando os trópicos, cá estamos nós em terras tupiniquins e eis que temos nossas tradições também inventadas para perpetuar – através da formalização institucional – determinadas práticas. Mas, se por tradição entendemos costumes, o que é então esta tradição inventada? Na introdução do livro, Hobsbawm se preocupa em contextualizar essas definições. A tradição como sinônimo de costume é criada de forma espontânea e acaba mudando com o passar do tempo, assim como às relações sociais, já as tradições ‘inventadas’ são nas palavras de Hobsbawm: “um conjunto de praticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.” Ao ler tal definição me veio à mente a nossa famosa e quase muda Voz do Brasil. O mais antigo programa radiofônico brasileiro faz 80 anos no dia 22 de julho. Amado por alguns, odiado por outros tantos, o programa vem tentado sobreviver a uma enxurrada de ações para continuar no ar. A Advocacia Geral da União tem tido muito trabalho para reverter às ações de Norte a Sul do país pela flexibilidade no horário da transmissão. No dia 27 de janeiro de 2012, por exemplo, a AGU conseguiu cassar uma liminar que autorizava uma rádio no Rio de Grande do Sul a transmitir jogos de futebol no horário oficial do programa. Isso, menos de uma hora depois de a liminar ter sido obtida pela emissora. Outras emissoras têm sucesso, como a Rádio Bandeirantes de São Paulo, que transmite o programa de madrugada. A Voz do Brasil surgiu durante o regime de Getúlio Vargas - que não era bobo - e logo percebeu a influência, a abrangência e o interesse que o rádio despertava na sociedade – principalmente na população analfabeta que não tinha como ler os jornais. É bom lembrar que a televisão chegou ao Brasil em 1950 e até lá o rádio era o meio de comunicação que atingia, realmente, a massa. Assim como Hitler, Getúlio percebeu o potencial do rádio na propagação da ideologia do governo e investiu pesado, inclusive encampando várias emissoras nos anos 30. Primeiro teve o nome “Programa nacional”, em 1939, já com o Estado Novo, o programa foi rebatizado como “A hora do Brasil” e tornou-se transmissão obrigatória das emissoras. De lá para cá, mudou novamente de nome, mas manteve o horário e a obrigatoriedade além de invocar o nacionalismo romântico dos acordes da abertura da ópera “O guarani”, de Carlos Gomes. Nos últimos anos, o programa passou por mudanças, como a infeliz que profanou a música de Carlos Gomes no ritmo de axé, samba, choro e até forró, mas procurou tirar o ‘ar’ autoritário que sempre perseguiu as transmissões para um ‘ar’ mais cidadão com a participação de vários órgãos federais, um texto mais leve e reportagens especiais. Não há dúvidas que 'A Voz do Brasil' é uma aula técnica de radiojornalismo, mas o conteúdo precisa ter um caráter menos oficial (mesmo com as tentativas que são feitas) e, diante das mudanças proporcionadas pela evolução dos meios de comunicação, quem sabe a possibilidade de ter horário flexibilizado faça com que o ouvinte a ouça de forma espontânea, sem a carga dolorosa da obrigatoriedade. *Jornalista e doutoranda em Sociologia PPGS/UFS